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Poemas de Lezama

Tradução e introdução de Jorge Henrique Bastos

Se no século XIX a poesia cubana foi dominada pelas figuras femininas, além das obras de Julián Casal e José Martí, no século XX Lezama Lima tornou-se a figura tutelar, em conjunto com a geração que reuniu em torno da revista Orígenes. Autores como Eliseo Diego, Eugenio Florit, Nicolás Guillén, Gastón Baquero, Cintio Vitier, Virgilio Piñera, Fina García Marruz, acabaram por dominar o panorama literário daquela época. Tais poetas foram determinantes para a literatura produzida na Ilha.

A obra caudalosa propriamente dita de Lezama, que inclui poesia, ensaios e ficção, superou o perímetro geográfico onde surgiu, atraindo a admiração de gerações, tanto na América Latina como nos países em que foi publicada.

Lezama estreou na poesia com a exuberância neobarroca de Muerte de Narciso (1937), seguiram-se depois Enemigo Rumor (1941), Aventuras Sigilosas (1945), Dador (1960) e o livro póstumo Fragmentos a su imán (1977), entre outros títulos. Paralelo a isso, a polivalência criativa do poeta originou aquele que é considerado um dos mais importantes romances de língua espanhola (no Brasil há duas traduções), Paradiso (1966).   

A originalidade da sua voz se distingue pela subversão temática, a desconstrução dos padrões da língua, a proliferação vocabular extraordinária, que produzem intenso impacto na leitura. Sua poesia é uma genuína centrifugadora de imagens que eclodem numa sucessão colossal, mesclando referências literárias, cotidianas, mitológicas, históricas e filosóficas, lançando o leitor numa trama estética labiríntica. Segundo María Zambrano, ele era uma espécie de “araña que rodea a la tierra y teje desde dentro la tela que contiene y envuelve el caos”.

Nos poemas que aqui apresentados, a título de curiosidade chamo a atenção para a referência que faz ao Brasil em dois momentos, no poema dedicado ao poeta mexicano Octavio Paz; e no poema “Duas famílias”, publicado naquele que foi o seu último livro, Fragmentos a su imán.

A obra de Lezama Lima concentra em si a vanguarda literária da Ilha, que se desmembrou e se prolongou, refazendo-se noutras expressões, mas sempre com a marca fundacional deste poeta maior.

Octavio Paz

Na eclosão do remoinho
o guerreiro japonês inquire sobre seu silêncio,
lhe respondem, na descida aos infernos,
os ossos urinados com sangue
da furiosa divindade mexicana.
O marzipan com as franjas do presságio
se iguala à placenta da vaca sagrada.
O pavilhão vazio oprime a brisa alta
e a transforma num caracol sangrento.
No Rio, o carnaval puxa a corda
e aparecemos na sala recém iluminada.
Na ilha de São Luís a conversação,
serpente que penetra pelo lado com a lança,
torna visível os postes da cidade tibetana
e chove, como uma árvore, nos ouvidos.
O morcego trinitário,
estranha quietude no tao insular,
com seu belo bigode fumegante.
Observando tudo aqui e ali atentamente.
És o cervo que vê nas respostas do rio
a serpente se arrastando na natureza
com escamas que convocam o ritmo inaugural.
Nomear e fazer o nome na cegueira palpatória.
A voz ordenando com a máscara os reis da Grécia,
o sangue que não se acostuma à tenaz noturnal
volta à primigênia esfera em remoinho.
O sacerdote, adormecido no terraço,
desperta em cada palavra que flecha
a perdiz caída em seu espelho de metal.
O movimento da palavra
no instante do desprendimento que começa
a desfilar na quantidade resistente,
na possível cidade criada
para os moradores incriados, mas já respirando.
As danças chegaram com seus disfarces
ao centro do bosque, porém já o fogo
havia desenraizado o horizonte.
A cidade adormecida evapora sua linguagem,
o incêndio girava como água
pelos degraus dos braços.
Uma nova ordem indecifrável
ergueu a cabeça do náufrago que falava.
Só o incêndio espelhava 
a dimensão silenciosa do naufrágio.
                                                       Março, 1971

Uma fragata com as velas despregadas, gira golpeada pela tempestade, até ingressar num círculo transparente, azul, inalterável, no lento quadriculado de um prisma

As velas se volvem
batidas pelo cão da névoa.
Giram até esfarrapar,
e o grande vento procura os detritos.
O círculo começa a girar
com uivos penetrantes,
os homens se borram, um pedaço
de madeira amortecida pelas águas
contorna o sexo sonolento do alcatraz.
A proa fabrica um abismo
para que o grande vento lhe dilacere os ossos.
Crescem os ossos abismados,
as areias esquentam
as pedras do corpo em seu sonho
e os ovos no relógio central.
O alcião se emaranha nas velas,
entra e sai da blasfêmia nebulosa.
Parece que com seu bico
impele a rotação da fragata.
Gira o barco sobre o centro
do farrapo de seda.
Sopradas por baixo
as velas se esfarrapam
na brancura transparente da onda.
Uma fragata
com todas suas velas emproadas,
volve golpeada pelo grotesco Éolo,
até aportar num círculo
azul, inalterável, com bordas amarelas,
na lente quadriculada de um prisma.
Ali se vê a transparência velada,
a fragata, acasalada com o vento,
desliza sobre um cordame de seda.
Os pássaros descansam
no cobre tíbio da proa,
um deles, o mais provocador,
bate as asas e canta.

A encantada cauda do delfim
mostra o molusco em seu crescente.
Hoje é uma gravura
no tenebrário de uma aula noturna.
Quando as luzes se tornam um borrão,
começa de novo o combate sem descanso,
entre o cão das névoas e a brancura
desesperadamente sucessiva das ondas.
                                                                Abril, 1971

Duas famílias

Seu pai era um “diplomata de carreira”,
como ele dizia para se diferenciar
do aluvião de politicians disfarçados,
certamente com uma clássica modesta displicência.

Foi para o Brasil,
ali onde uma noz parece um coco
e as mortinha se banham na praia.
Pensava sem remissão nos galanteios
de Talleyrand e nas condecorações
de Metternich, com bigodes frisados
e sentado sempre no centro da mesa.
Ali se casou com uma brasileira
de uma família que havia sido protetora de Aleijadinho.
Morreu muito jovem e deixou uma filha de sete anos.
Depois o padrasto foi embaixador na Suécia,
ela recordava que havia vivido numa casa
toda cercada de janelas
onde a neve cai muito lenta
capturando a mosca verde.

Depois estudara no sombrio internato de Sacré-Coeur.
Quando a surpreenderam com um livro de Musset
e recebeu com discreta surpresa a notícia da sua expulsão.
Sua mãe chorava diante de uma monja
inexorável, coberta com uma chamejante máscara de ferro.
A “petit Louise” lançava seus olhos para além da janela,
onde uma abelha rosa vibrava
pesando menos do que o ar,
apoiando-se na cabecinha de uma girafa
muito distante, tão vaga que não ouvia o que lhe perguntavam
sobre sua saúde ou seus broches.

Mudaram-se depois para Viena,
eram os dias da estreia do Terceiro Homem
e as cloacas eram musicadas por Mozart,
enquanto o gato nos reconhecia
pelos cadarços dos sapatos.
A “petit Louise” fazia o bacharelado
num colégio
de catorze sílabas racinianas.
Sua mãe torcia seus dedos,
cortava-os com uma tesoura de prata
e com cera morna voltava a colá-los,
como se fosse esgrimir com uma espada
da rainha do século XVIII.
Um médico psiquiatra, jovem analista,
não exageradamente polido nem muito presunçoso,
se apaixonara pela jovem
que se escondia atrás das cadeiras
e perguntava, onde estou?
Então se sentiu transparente,
não conseguia se tocar,
nem olhava a sorrir para a grande porta rococó do colégio.
Falou à sua mãe 
que lhe desse uma vassoura para varrer   
essa pedra que ela havia posto
ao lado da sua cama.
Assim teve a primeira visão da morte,
uma caixa de joias de ébano,
com um estilete secreto.
A jovem sentia frio e queria tremer,
mas não podia e o medo não avançava para seus braços.
Sentia frio e compunha os peitos.

Se alguém dizia
à sua mãe que era brasileira,
lhe mostrava seus modelos da Christian Dior
e acentuava os finais da frase.
Queria pronunciar como uma flor de Renoir,
ou um nu de Manet,
ou aquelas músicas de Ravel
que não tinham nada de jazz.
Mas seus olhos eram negros,
como quem olha uma praia
e despertava cantando
músicas carnavalescas que ouvira
quando menina com a sua velha cozinheira.
Quando estava só
e se olhava diante do espelho,
colocava um grande laço vermelho
como uma borboleta de Pernambuco
pousada em seus cabelos.

Acreditava que era mais francesa que a madame Du Deffand,
a tradutora de Newton,
a amiga de Voltaire.

A “petit Louise” foi a Londres,
suas chaminés como um dedo dourado
cortado em pedaços empilhados.
Os ruivos a faziam rir,
como se visse um gato rosa
ou uma colher de açúcar
que entrasse pelo nariz.
A delicadeza de Shelley
havia se debilitado em jovens
lânguidos e ágeis como gazelas.
Ali conheceu um autor de teatro,
cubano com seis anos de Espanha
mostrou à francesinha
a segunda natureza, o combate
dos espelhos com suas frotas
repletas de bandeiras e saudações
matinais. As frotas se chocavam
quebrando o espelho.
Os personagens saltavam das lunetas
para o centro do proscênio,
todos se conheceram depois do assassinato
de Júlio César, mas não se saudavam
para não despertar, adormecidos
davam-se as mãos
como se afundassem numa piscina
e começassem a nadar.

Ela se tornou cubana
e foram para Pinar del Río
dormir sobre a brandura
carnal das folhas de tabaco.
Era uma carne universal
que levou-a de novo até a França.
Numa excursão ao vale pinarenho
viu um colibri morto de êxtase.
Seu biquinho se afundava no pólen adocicado
e parecia  mais vivo e colorido
quanto mais morto.
Ali a “peitit Louise” aprendeu
que a morte é um êxtase,
que a vida consiste em dormir
envolta na carne das folhas do tabaco,
na evaporação universal.
                                        Novembro 1973

María Zambrano

María nos torna tão transparentes
que a vemos ao mesmo tempo
na Suíça, em Roma ou Havana.
Acompanhada de Araceli
não teme o fogo nem o gelo.
Possui gatos frígidos
e os gatos térmicos,
aqueles fantasmas elásticos de Baudelaire
olham-na tão pausadamente
que María temerosa começa a escrever.
Ouvia-a falar de Platão até Husserl
em dias alternados e opostos pelo vértice,
e terminar cantando um corrido mexicano.
As ondinhas jônicas do Mediterrâneo,
os gatos que utilizavam a palavra como,
que segundo os egípcios unia todas as coisas
como uma metáfora imutável,
lhes falavam ao ouvido
enquanto Araceli traçava um círculo mágico
com doze gatos zodiacais,
e cada um esperava seu momento
para salmodiar o livro dos mortos.
María é para mim
como uma sibila
da qual tenuemente nos aproximamos,
crendo ouvir o centro da terra
e o céu do empíreo,
que está mais além do céu visível.
Vivê-la, senti-la chegar como uma nuvem,
é como tomar uma taça de vinho
e fundir-nos em seu barro.
Todavia, ela pode se despedir
abraçada a Araceli,
mas sempre retorna como a luz tremeluz.
                                                                       Março, 1975 

Sobre uma gravura de alquimia chinesa

Debaixo da mesa
vislumbram-se como que três portas
de pequenos fornos,
em que se veem pedras e madeira ardendo,
por onde assoma o anão
que masca sementes para sonhar.
Sobre a mesa
distinguem-se três almofadas cinzas e azuis,
em duas delas há como que figuras geométricas
parecidas a ovos inquebráveis.
Ao lado, um jarro sem ornamento.
Pedaços de lenha pelo chão.
Um homem curvado sobre a balança
pesa uma cesta de amêndoas.
A vara de ébano
alcança de imediato o fiel.
O homem que vende
teme os três pequenos fornos
que se escondem debaixo da mesa.
Por ali devem sair
as figuras aguardadas
que virão quando o homem que pesa
lograr o centro da canastra.
À sua direita o homem que contempla
absorto o outro que pesa,
brinca com alguns pássaros.